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  • Foto do escritorAdnan Brentan

Existe para admirar (Hermann Hesse)

Desta vez me dou a liberdade de publicar, não uma reflexão genuinamente minha, mas de um autor, já há muito tempo fora deste mundo, que considero uma alma gêmea ou uma alma irmã devido a coincidência de gostos e reflexões.



Tudo o que é visível é expressão, toda natureza é imagem, é linguagem e colorida escrita hieroglífica. Nós, não obstante as ciências naturais altamente desenvolvidas, não estamos tão bem preparados e educados para a contemplação da natureza e pode-se talvez dizer que estamos em pé de guerra com ela. Outros tempos, talvez todos os tempos, todas as épocas anteriores, até a conquista da Terra pela técnica e pela indústria, tiveram sensibilidade e compreensão para a linguagem simbólica e mágica da natureza e sabiam lê-la com mais simplicidade e inocência que nós. Essa sensibilidade não era, de maneira alguma, um relacionamento sentimental; o relacionamento sentimental do homem para com a natureza é mais recente; pode ser que seja talvez somente o produto de nossa consciência pesada.


A sensibilidade para a linguagem da natureza, a sensibilidade para a diversidade que a vida criadora em toda parte apresenta e o desejo ardente de saber a sua explicação são tão antigos quanto o próprio homem. A ideia de uma sagrada unidade oculta na grande diversidade de uma mãe primordial por trás de todos os nascimentos, de um criador por trás de todas as criaturas, esse impulso primordial ao encontro da aurora do universo e do segredo da volta às origens tem sido a raiz de toda arte e continua a ser hoje como sempre. Nós hoje parecemos imensamente distantes da veneração da natureza nesse sentido devoto da procura de unidade na multiplicidade, pois não gostamos de confessar essa compulsão primordial, infantil e caçoamos quando somos lembrados dela. Mas, apesar de tudo, deve ser um erro julgar que nós e toda humanidade atual somos incapazes de ver a natureza com devoção. Só que hoje em dia é difícil para nós transformar poeticamente a natureza em mitos e personificar com tanta ingenuidade o criador e venerá-lo como pai, como faziam outras épocas. Talvez não estejamos de todo errados quando achamos, às vezes, as formas de religiosidade antiga superficiais e fúteis e quando parecemos sentir que a imensa inclinação da física moderna para a filosofia é, no fundo, um fenômeno de religiosidade.



Quer nos comportemos modestamente ou arrogantemente, quer zombemos das formas antigas de crença de que a natureza seria dotada de alma, ou as admiremos, a nossa relação real para com a natureza é, e continua a ser, a de uma criança para com a mãe, mesmo quando a compreendemos apenas como objeto de exploração, e não se acresceram novos, aos poucos caminhos antiquíssimos que levam o homem à bem-aventurança ou à sabedoria. Um deles, o mais singelo e ingênuo, é o caminho de assombro diante da natureza e de observação respeitosa de sua linguagem. "Existe para admirar", diz um verso de Goethe. Começar admirando e terminar também admirando, não é, no entanto, um caminho vão. Ainda que admire o musgo, um cristal, uma flor, um inseto dourado, ou um céu com nuvens, o mar com os gigantescos anteparos de suas dunas, uma asa de borboleta com a composição de suas rugas cristalinas, a forma e a moldura de suas bordas a escrita e os ornamentos múltiplos de seu desenho e as transições e matizes infinitamente suaves e encantadores das suas cores — cada vez que entro em contato pelo olhar ou por outro de meus sentidos com uma partícula da natureza, quando sou por ela atraído e encantado e me abro, por um instante, à sua existência e à sua revelação, deixo no mesmo instante o mundo avarento e cego da insuficiência humana e, em vez de pensar ou de ordenar, em vez de adquirir ou explorar, de criticar ou de organizar, por um momento não faço outra coisa a não ser "admirar" como Goethe, e com esse maravilhar-me não me torno apenas irmão de Goethe e de todos os outros poetas e sábios, mas também me torno irmão de tudo a que admiro e a que, como mundo vivo, me uno: da borboleta, da nuvem, do rio e da montanha, pois pelo caminho de admirar fujo, por um instante, do mundo de separações e entro no mundo da unidade, lá onde uma coisa criada e uma criatura dizem um ao outro: Tat twam asi ("Isso és tu").


Contemplamos às vezes com saudades, até com inveja, o relacionamento mais ingênuo de gerações antigas para com a natureza, porém não tomemos a nossa época mais a sério do que ela merece, nem vamos queixar-nos, também, de que as nossas universidades não ensinam a passagem pelos caminhos mais singelos para atingir a sabedoria, que lá se ensina, em vez de admirar, o contar e medir, em vez da admiração, o prosaísmo em vez do encantamento, a insistência rígida nos pormenores isolados, em vez da atração pela inteireza e pelo uno. Pois essas universidades não são escolas da sapiência, elas são escolas de saber; apesar disso, pressupõem implicitamente o que por elas não pode ser ensinado, a faculdade de vivenciar, de emocionar-se, o maravilhar-se de Goethe, e suas melhores inteligências não conhecem meta mais nobre do que voltar a tornar-se de novo degrau para fenômenos como Goethe e outros verdadeiros sábios.

(1935) A Arte dos Ociosos, página 312



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